O Lado B
O Lado B
Há um jargão no universo musical que é o chamado “Lado B”. Na época do vinil, este era tocado dos dois lados – A e B.
Geralmente, as faixas com mais potencial ou os hits ficavam no Lado A, com as músicas que seriam menos repercutidas compondo o Lado B. Com o fim do vinil, o termo acabou ganhando um significado um pouco diferente, e “Lado B” se refere a uma ou mais faixas que não caíram num completo esquecimento, mas que estiveram longe de se tornar um sucesso.
New Orleans tem uma relação intensamente íntima com a música. É inevitável: tente falar por alguns minutos sobre a cidade sem falar de música. Mundialmente conhecida pelas origens do jazz e pelo Mardi Gras, cada metro de seu bairro mais famoso – o French Quarter – parece estar em constante movimento. Silêncio definitivamente não combina com New Orleans, e talvez por isso a torcida do Saints faça tanto barulho quando o time se apresenta no Superdome.
No momento de buscar um tema ou uma metáfora que representasse esta temporada do Saints, tentei, juro, sair deste e de tantos outros “clichês” que frequentemente são associados à cidade ou ao time. Falhei miseravelmente… ou não? Vejamos as coisas sobre outra perspectiva.
O furacão Ida atingiu a Lousiana no início de setembro. A destruição provocada por sua passagem só não foi maior do que a do furacão Katrina. Por esta razão, a equipe teve que se deslocar e passar a treinar nas instalações de uma universidade no Texas. O primeiro jogo da temporada foi disputado no TIAA Bank Stadium, estádio do Jacksonville Jaguars, em uma surpreendente vitória por 38-3 contra Green Bay. O Saints só voltaria a jogar no Superdome na Semana 4, contra o Giants, jogo em que acabou sendo derrotado por 27-21. Como os jogos na temporada anterior não receberam torcida (ou receberam uma torcida muito pequena), era para este ter sido um retorno triunfal da who dat nation, mas esqueceram de combinar com a franquia de New York. O Saints só voltaria a New Orleans na Semana 8, contra o campeão Tampa Bay Buccaneers – e ali sim, num final de jogo catártico, venceríamos os rivais de divisão e poderíamos ouvir as milhares de vozes comemorando uma vitória do time.
Bem, os motivos para comemorar acabaram ali: Jameis Winston, que parecia começar a reencontrar seu bom futebol, sofreu uma lesão que o tirou do restante da temporada. Assim como Wil Lutz e Michael Thomas, que sequer chegaram a entrar em campo. Assim como aconteceria com Andrus Peat e Terron Armstead, o lado esquerdo da linha ofensiva.
E as lesões nos acompanharam durante toda a temporada, com ausências como as de Alvin Kamara, Ryan Ramczyk, Marcus Davenport e Cameron Jordan – em sua primeira ausência na carreira por conta da COVID-19. Além dele, vários outros jogadores foram desfalques por este motivo, e contra o Miami Dolphins, na Semana 16, foram 20 desfalques entre jogadores titulares e reservas. Ao todo, foram 58 titulares diferentes na temporada, um recorde na história da liga. Nem o próprio Sean Payton escapou, ficando de fora do SNF no inesquecível 9-0 em seu reencontro com Tampa Bay.
A menos que você tenha estado em outro planeta na última semana (não julgo, faria o mesmo se pudesse), sabe que o Saints terminou a temporada com 9 vitórias e 8 derrotas, perdendo a última vaga nos playoffs para o San Francisco 49ers. Estamos de fora da pós-temporada depois de 3 anos consecutivos. Dentro de todo este contexto, fica a pergunta: é possível dizer que o time falhou?
Antes de tentar responder a esta pergunta, é importante voltar um pouco mais, há cerca de um ano. O Saints era derrotado no Divisional Round pelo Tampa Bay Buccaneers e Drew Brees faria sua última exibição como jogador do time. O maior jogador de todos os tempos da história de New Orleans encerrou sua carreira em uma despedida extremamente melancólica, envolta por tristeza e… silêncio.
A maior parte da torcida e daqueles que acompanham a NFL não sabiam se aquele adeus também seria, de certa forma, um adeus ao time competitivo dos últimos anos. Poucas escolhas de draft e um saldo negativo gigantesco no salary cap davam pouca esperança até para o mais otimista dos torcedores. Havia ainda a incerteza sobre quem teria a ingrata tarefa de substituir o grande ídolo da franquia. Fazendo um paralelo com a música, como citei na introdução deste texto: quem seria então o novo solista deste ataque?
Em uma orquestra, o solista é aquele que faz os solos e é o líder em cada grupo de instrumentos: cordas, madeiras, metais, percussão e teclas. Pode-se dizer então que Drew Brees era o solista de um grupo ofensivo talentoso e bem sólido. Sua forma de “tocar” passou por mudanças ao longo dos anos: entre 2011 e 2016, por exemplo, Brees estava mais para um “carregador de piano” (o trocadilho é inevitável); dali até sua aposentadoria, quase um segundo maestro, regendo o ataque a tal ponto de fazer as chamadas ofensivas. De todo modo, sua importância não foi reduzida, pelo contrário: com o passar do tempo e acumulando cada vez mais experiência e sabedoria, Brees foi deixando de ser um “músico talentoso” para se tornar uma lenda.
E se eu disse segundo maestro, é porque o Saints tem em sua sideline um dos maiores maestros destes tempos: Sean Payton. Sob seu comando, a franquia deixou de ser um mero coadjuvante para ser uma das estrelas da liga. Mesmo com apenas um Super Bowl conquistado na carreira, Payton sempre soube que o “show tem que continuar”, principalmente nos anos em que defesas medíocres o impediam de ir mais longe. Quando este panorama mudou, o time não precisava apenas de seu grande solista para vencer (e nem poderia contar com isso).
Ironicamente, hoje, este é o grupo que enche os olhos da torcida. Dennis Allen vem fazendo um trabalho primoroso como coordenador defensivo, evoluindo imensamente a cada temporada. A defesa, que tem ótimos talentos em todos os setores, é muito forte na variação de jogadas e de sistemas de marcação. Com um ataque muito ineficaz nos últimos dois terços desta temporada, por conta das lesões e da troca de QBs, o grupo de defensores do Saints mostrou muito vigor e inteligência para conquistar duas saborosíssimas vitórias contra o Bucs. Para os admiradores de boas defesas, o ano do Saints no aspecto defensivo foi sensacional.
O ataque foi muito prejudicado pelas lesões na OL e, principalmente, pela lesão de Jameis Winston, mas ainda houve a lesão de Taysom Hill, de Alvin Kamara e a estreia de Ian Book como titular na NFL graças ao afastamento de Hill e Siemian por conta da COVID-19. Não havia muito o que fazer, mas Payton não inventou a roda e utilizou durante o ano todo um plano bem conservador, evitando o máximo de turnovers e despejando a confiança na unidade defensiva. Infelizmente, a ausência de peças foi mais determinante, apesar de algumas boas vitórias e outras partidas parelhas.
Voltamos então àquela pergunta: a temporada foi um fracasso? A minha resposta é não, mas é importante fazer uma ressalva. O Saints priorizou jogadores de linhas defensiva e ofensiva e algumas deficiências óbvias – LB e CB – tanto no draft quanto na free agency e isso fez com que o grupo de recebedores ficasse muito frágil, ainda mais com a lesão de Michael Thomas. Tre’Quan Smith e Adam Trautman não deram aquele passo adiante que tanto se esperava. A falta de consistência desse grupo é um problema que já ronda o time há alguns anos e é impossível não imaginar que um segundo Super Bowl teria sido realidade se tivéssemos mais profundidade de elenco nestas posições.
Bem, mais do que não considerar a temporada de 2021 um fracasso, digo ainda que o New Orleans Saints fez uma apresentação muito digna diante de tantas intercorrências. Do lado defensivo, fomos, sem sombra de dúvida, uma das cinco melhores equipes nessa temporada. As vitórias necessárias não vieram, em muitas partidas sofremos muito mais do que sorrimos. Valendo-me novamente da referência musical, essa temporada seria o “Lado B” do Saints. Lembraremos das brilhantes vitórias sobre o Packers e Bucs (com direito a shutout) e das atuações viscerais de nossa defesa. Essa temporada trouxe um bom presságio, pois provou que não somente a franquia não deixou de ser relevante como também indica que, com uma boa composição e novos talentos, nosso maestro tem tudo para emplacar um novo sucesso.